terça-feira, agosto 28, 2012

O Ato Gratuito


Não sei porque razão gosto tanto de ler Clarice Lispector. Fico horas e horas debruçada sobre ela, percorrendo seus pensamentos nos seus textos. Li e ouvi muito sobre ela. Já fiz um post aqui no blog, onde cito diversas opiniões da intelectualidade contemporâneos dela. Tentaram definir Clarice.. rss.. tentaram !!

Antônio Callado a definiu como enigmática.
Carlos Drummond de Andrade como um mistério.
O jornalista Paulo Francis como insolúvel.
Mas o jornalista e escritor Otto Lara Resende disse : "Ela não fazia literatura, mas bruxaria."

Não tenho a menor dúvida.

O conto "O Ato Gratuito" pela primeira vez, ouvi. Não li. Aracy Balabanian fez um cd "declamando" seus contos. Perfeita nas pausas, no tempo, no ritmo. 

Daqui há mil anos quando se depararem com os textos de Clarice será um enigma maior. Que bom.



O Ato Gratuito de Clarice Lispector.

Muitas vezes o que me salvou foi improvisar um ato gratuito. Ato gratuito se tem causas, são desconhecidas. E se tem conseqüências, são imprevisíveis.

O ato gratuito é o oposto da luta pela vida e na vida. Ele é o oposto da nossa corrida, pelo trabalho, pelo amor, pelos prazeres, pelos táxis e ônibus, pela nossa vida diária enfim - que esta é toda paga, isto é, tem o seu preço.

Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu escrevendo a máquina - quando alguma coisa em mim aconteceu. Era o profundo cansaço da luta.

E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordaria. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar idéias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então, a sede estranha e profunda me apareceu. Eu precisava. Eu precisava com urgência - de um ato de liberdade : do ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o que eu secretamente era. E necessitava de um ato pelo qual eu não precisava pagar. Não digo pagar com dinheiro, mas sim, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver.

Então, minha própria sede guiou-me. Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: "Vamos ao Jardim Botânico". "Que rua ?", perguntou ele. "O senhor não está entendendo", expliquei-lhe; "não quero ir ao bairro e sim ao jardim do bairro". Não sei por que, olhou-me um instante com atenção.

Deixei abertas as vidraças do carro, que corria muito, e eu já começara minha liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me batesse no rosto grato, de olhos entrefechados de felicidade.

Eu ia ao Jardim Botânico para quê ? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver.

Saltei do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro. Ao vento, ao ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério.

O mistério me rodeava. Olhei os arbustos frágeis recém-plantados. Olhei uma árvore de tronco nodoso e escuro, tão largo que me parecia impossível abraçá-lo. Por dentro dessa madeira de rocha, através de raízes pesadas e duras como garras - como é que corria a seiva ? essa coisa quase intangível e que é vida ? Havia seiva em tudo, como há sangue em nosso corpo.

De propósito não vou descrever o que vi : cada pessoa tem que descobrir sozinha. Apenas lembrarei que havia sombras oscilantes, secretas. De passagem falarei de leve na liberdade dos pássaros. E na minha liberdade. Mas é só. O resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas. Eu andava, andava. Às vezes parava. Já me afastara muito do portão de entrada, não o via mais, pois entrara em tantas alamedas.

Eu sentia um medo bom - como um estremecimento apenas perceptível de alma - um medo bom de talvez estar perdida e nunca mais, porém nunca mais, achar a porta de saída.

Havia naquela alameda um chafariz de onde a água corria sem parar. Era uma cara de pedra e de sua boca jorrava a água. Bebi. Molhei-me toda. Sem me incomodar. Esse exagero estava de acordo com a abundância do jardim.

O chão estava às vezes coberto de bolinhas de arueira, daquelas que caem em abundância nas calçadas de nossa infância e que pisamos, não sei por que, com enorme prazer. Repeti então o esmagamento das bolinhas e de novo senti o misterioso gosto bom.

Estava com um cansaço benfazejo, era hora de voltar, o sol já estava mais fraco. Voltarei num dia de muita chuva. Só para ver o gotejante jardim submerso.

Nota. :
Peço licença para pedir a pessoa que tão bondosamente traduz meus textos em Braille para os cegos, que não traduza este. Não quero ferir olhos que não vêem.